Jorge Forbes

São Paulo/SP
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Jorge Forbes é psicanalista e psiquiatra, doutor em psicanálise e em medicina. Autor de vários livros, especialmente sobre o tratamento das mudanças subjetivas na pós-modernidade.


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Os psicanalistas dos tempos desbussolados


Jorge Forbes

Quando nos sentamos para conversar em um congresso americano da orientação lacaniana, sobre “os analistas diante da agitação do Real”, tema dessa mesa, é porque desconfiamos que possa haver uma dificuldade para os analistas e para a psicanálise, nesses novos tempos desbussolados.

Está na cabeça de muitos, dessa orientação lacaniana, a frase premonitória de Lacan, em “A Terceira” - conferência pronunciada em Roma, em 1974 - na qual ele afirma: - “ O curioso de tudo isso é que seja o analista quem dependa do real nos anos que virão, e não o contrário. Não é de modo algum do analista que depende o advento do real. O analista tem por missão desafiá-lo. Apesar de tudo, o real poderia tomar as rédeas, sobretudo depois que passou a ter o apoio do discurso científico”.

O que percebemos dessa quase profecia, nos dias de hoje? Examinemos duas questões: como está esse mundo em “crise das normas”? Subtítulo do Enapol; e como está o psicanalista nesse mundo?

Começando pela crise das normas, assim a situaria. Vivemos uma revolução no laço social nunca dantes vista, nos últimos 2500 anos. Muito sinteticamente, nossa civilização teria passado por quatro períodos de longa duração:

Primeiro período: o da organização do laço social em torno à transcendência da natureza. O humano, à semelhança dos elementos naturais, como as frutas, dominaria o real se adequando ao ciclo natural das coisas: uns seriam senhores, outros escravos, outros artesãos, outros guerreiros etc. Uma vez os lugares naturalmente marcados, só restaria se adaptar a eles.

Segundo, em seguida ao período da transcendência natural, veio a transcendência divina. Opção mais atraente que a anterior por seu caráter democrático de todos iguais frente a um deus, e pela promessa de uma vida eterna.

Terceiro é o período que se inicia com o Iluminismo, no qual a transcendência divina é substituída pela razão.

Quarto é o período que se refere à revolução  nietzscheana, ao desmantelamento das três transcendências anteriores, vistas todas elas como negação do real.

Quinto período é o que nos cabe construir agora.

Fui sintético, como preveni, nessa periodização, por querer ressaltar nela um só aspecto: a razão do porquê entender que vivemos uma revolução jamais vista. Notemos que nas passagens dos três primeiros períodos, muda o objeto da transcendência: natureza, deus, razão, mas se mantém a verticalidade da orientação do laço social. É diferente do que nos ocorre hoje, pois vivemos uma dupla mudança: do objeto da transcendência e da passagem para uma organização não mais vertical, mas horizontal do laço social. Daí o impacto que sentimos e nomeamos como “crise das normas”.

“O futuro da psicanálise depende do que advirá desse real”, mais uma vez Lacan, ao final de “A Terceira”. Frase forte, quase ameaçadora. O real, ele o tinha definido antes, nessa mesma fala, dizendo: - “O real não é o mundo. Não há nenhuma esperança de alcançá-lo por meio da representação”. Isso nos abre a possibilidade de examinar a segunda questão, a saber, como está o psicanalista nesse mundo?

Pensou-se que ele estaria mal, por vários motivos, especialmente dois: porque não se alcança o real por meio da representação, Lacan dixit, e porque o real seria mais bem captado pelas representações científicas. O fim da psicanálise foi anunciado em capas de revistas e os milagres das ciências começaram a ser louvados nos altares das qualidades de vida. Funcionou? Não! Os psicanalistas, a partir da orientação lacaniana têm uma nova clínica, dita segunda, que não é a da representação, mas da consequência, e os cientistas, os verdadeiros cientistas são os primeiros a afirmar que as previsões de naturalizar a experiência humana são falsas. Os avanços das ciências, especialmente aquela que é paradigmática no século XXI, a Biologia, muito ao contrário de arautos ameaçadores, demonstram, como pus em título de trabalho anterior apresentado nessa mesma Buenos Aires, no ano passado, no Congresso da AMP, os avanços demonstram que “a ciência pede análise”. Craig Venter, para ficar em um só exemplo, dele que foi a primeira pessoa a ter o seu genoma decodificado, logo em seguida a esta experiência mirabolante afirmou: - “Há influências genéticas, sim, mas acredito que as pessoas são responsáveis por seu comportamento”.

O avanço das ciências não abole a responsabilidade consagrada por Lacan na frase: “Por nossa condição de sujeitos somos sempre responsáveis”.

A segunda clínica lacaniana, a clínica dita do real, está em boa condição de desafiar o real, como queria seu criador, e ela o faz em dois movimentos fundamentais: o de responsabilizar o analisando frente ao acaso e à surpresa, inventando uma resposta forçosamente singular, pois o real não é o mundo, e, ato contínuo, de levá-lo a inscrever, a passar a sua diferença singular exatamente nesse mundo. É a forma que temos de continuarmos convivendo com o inevitável estranho real do qual somos constituídos – hoje mais evidente que ontem - mas transformando-o de sinistro amedrontador em ação criativa.

O desafio do real nos exigirá rever nossos bisturis da clínica. A metáfora cirúrgica é de Freud: -“O tratamento psicanalítico pode ser comparado a uma operação cirúrgica e exigir, de modo similar, que seja efetuado sob condições que serão as mais favoráveis para seu êxito”. E Lacan, na mesma linha, no Seminário I, assim se expressou: “se tratava ali, para Freud, de uma ferramenta, no sentido em que se diz que se tem um martelo na mão. Bem seguro na minha mão, diz ele, em suma, e aí está como costumo segurá-lo. Outros talvez preferissem um instrumento um bocadinho diferente, mais afeito à mão deles”. Temos uma tarefa interessante pela frente: a definição dos bisturis dessa clínica do real. Um primeiro já o toquei aqui, é um novo conceito de responsabilidade frente ao acaso, muito diferente do que se entende normalmente como tal, especialmente no direito. A isso se acrescentam o corte da sessão, a compressão do tempo, o ressoar, a equivocidade, o ponto da vergonha e mais outros, cujo desenvolvimento extrapolaria o tempo que me foi dado e o objetivo solicitado que era o de aportar alguns elementos para uma conversa sobre como enfrentamos a agitação do real. 

(Trabalho de Jorge Forbes apresentado no VI ENAPOL – Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana, na plenária “Os analistas diante da agitação do Real”. Buenos Aires, novembro de 2013).

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